segunda-feira, 10 de agosto de 2009




«... lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucolico, de especie complicada, e apresentar-lh’o, já não me lembro como, em qualquer especie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma commoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa especie de extase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triumphal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um titulo, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se || seguiu foi o apparecimento de alguem em mim, a quem dei logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da phrase: apparecera em mim o meu mestre.»

Dir-se-ia que Pessoa, escrevendo à distância de mais de vinte anos, recordava o caderno como o primeiro suporte em que os versos de Caeiro tiveram vida, precedidos pelo título. De facto, o título lá está, a meio da folha inicial do caderno. Mas a evidência do dossier genético diz-nos que a escrita dos poemas do Guardador tinha começado antes, nos rascunhos, e continuado depois, nas inúmeras emendas que o caderno foi acolhendo. Esta evidência só existe graças à preservação de todos os papéis anteriores e posteriores ao «dia triunfal» (à fé das datas, nenhum poema foi escrito em 8-3-1914). Deve ser atribuído a essa preservação um estatuto de deliberado acto autoral, que não fica abaixo dos gestos de escrita. O que nos faz concluir que Pessoa escreveu e contra-escreveu. Interrogado sobre a criação dos heterónimos, não declarou que a ideia foi surgindo aos poucos, como os papéis sugerem; mas conservou os papéis, para que contassem a sua história. E contou a Casais Monteiro a história de outra maneira.